6 de jan. de 2011

Aula 2 - A Constituição de 1988 e a democracia participativa

A palavra democracia (governo do povo) tem origem na Grécia antiga e o princípio democrático tal qual conhecemos hoje tem suas bases nos ideais da igualdade, da liberdade e da fraternidade adotados na Revolução Francesa, no final do século XVIII.
Em nosso país, como foi mencionado na aula anterior, a vivência democrática tem sido um enorme desafio e uma construção recente, destacando-se o período histórico-político do século XX e mais enfaticamente a partir da década de 80.
Democracia e direitos humanos caminham juntos. “Não há democracia sem direitos humanos e não há direitos humanos sem democracia” (Piovesan, 2003)1.
No caso do Brasil, a história dos direitos humanos está diretamente vinculada com a história das constituições brasileiras.
A primeira Constituição brasileira data de 1824 - a Constituição Imperial , outorgada, e apesar de concentrar muitos poderes nas mãos do imperador - a prerrogativa para intervir nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário - traz os primeiros registros da inviolabilidade dos direitos civis e políticos e a consagração dos Direitos Humanos no Brasil.
Com a proclamação da República, em 1888, surgiu a primeira Constituição Republicana, datada de fevereiro de 1891, inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América. Em seus menos de 100 artigos, estabelece a forma de Estado (Federação); a forma de governo (República); e o sistema de governo (Presidencialismo). Do ponto de vista dos direitos humanos manteve aqueles poucos consagrados na Constituição Imperial e os ampliou, por exemplo, com o estabelecimento do voto direto para deputados, senadores, presidente e vice presidente da república. No entanto, a apenas alguns setores da população era conferido este direito. Apesar de ter abolido a exigência de renda como critério de exercício dos direitos políticos, determinou que “os mendigos, os analfabetos, os religiosos, não poderiam exercer tais direitos políticos” (Samanieco).
Em 1934, o País conquistou sua primeira “Constituição social”. Após a revolução constitucionalista de 1932, foi nomeada pelo governo provisório uma comissão para elaborar o projeto de constituição. Com pouca participação popular, a Constituição de 34 introduziu algumas garantias individuais; assegurou direitos sociais aos cidadãos, notadamente direitos trabalhistas, tais como proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, em razão de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; proibiu o trabalho para menores de 14 anos de idade, o trabalho noturno para os menores de 16 anos e o trabalho insalubre para menores de 18 anos e para mulheres; determinou a estipulação de um salário mínimo capaz de satisfazer às necessidades do trabalhador, o repouso semanal remunerado e a limitação de trabalho a oito horas diárias, entre outras garantias sociais. Para as mulheres esta constituição foi um marco na medida em que instituiu o Voto Feminino.
No entanto, esta Constituição teve vida curta de apenas 3 anos! No período de 1937 a 1946, sob inspiração nazi-fascista, nosso país viveu a “ditadura de Vargas”. A Constituição do “Estado Novo”, de 10 de novembro de 1937, suprimiu as liberdades, centralizou o poder no Presidente da República, instituiu os tribunais de exceção. Este período foi abordado recentemente no filme “Olga” que retrata tanto a luta pela liberdade e direitos sociais, quanto as barbaridades praticadas pelo terror do Estado e a relação com a ordem nazifascista.
O mundo vivia o pesadelo da Guerra e como diz Piovesan “a Segunda Guerra trouxe a ruptura com os direitos humanos e o Pós-Guerra trouxe a leitura da sua reconstrução”.
As liberdade políticas e os direitos humanos foram reconquistados e ampliados com a Constituição redemocratizadora, de 1946 (dois anos antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos). Entre outros direitos ampliados, o trabalho noturno a menores de 18 anos foi proibido, institucionalizou-se o direito de greve, houve um fortalecimento da Federação. A Constituição redemocratizadora vigora por quase 20 anos até o golpe militar.
Em 1964, o Brasil sofre mais um golpe no processo democrático e, em conseqüência, os direitos humanos e as liberdades são novamente usurpados.
Passam a vigorar os Atos Institucionais com punições e arbitrariedades, tendo no AI-5 a expressão máxima do terror e do medo provocados pela ditadura militar. A tortura, a ausência de liberdade, as perseguições e assassinatos políticos marcaram este período.

1964
“O Brasil estava salvo do comunismo! Os crioulos não invadiriam mais as casas das pessoas de bem!”. “As empregadinhas voltariam a ficar de cabeça baixa!”. General Humberto de Alencar Castello Branco

1985
Jornalista: Se o Sr. Ganhasse um Salário mínimo, o que faria?
João Figueiredo: Dava um tiro na cabeça!

O aparato legal deste cenário político foi garantido na Constituição de 1967 e posteriormente, na Constituição de 1969 que incorporou as arbitrariedades dos Atos Institucionais.
Tanta arbitrariedade e violação dos direitos humanos têm limite!
Ao final da década de 70, por pressão dos movimentos sociais na luta por direitos, liberdade e democracia, o País conquista a Anistia e inicia-se o processo de abertura política que culmina, em 1985, com a queda do Regime Militar e a emenda constitucional nº 25 que convoca as eleições para a Assembléia Nacional Constituinte.
A Constituição Cidadã de 1988 O Brasil, como vimos, desde a independência, é regido por Constituições que ao longo da história refletiram as diferentes dimensões e o conceito dos direitos humanos.
A Constituição Federal de 1988 é um marco! Segundo Piovesan, “é um marco simbólico que reinventa a nossa cidadania, é o marco da transição democrática e da nacionalização dos direitos humanos no país”.
Em seu preâmbulo, a Constituição de 1988 institui o Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. Estabelece em seu primeiro artigo o fortalecimento da Federação, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, declara seus princípios fundamentais e afirma a soberania popular. Além de instituir como novo paradigma, a democracia participativa.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Garantiu entre seus princípios fundamentais a redução das desigualdades, considerando a diversidade sexual, de raça, geração e o combate a qualquer forma de discriminação, expressos em seus artigos terceiro e quinto.

Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I.Constituir uma sociedade livre, justa e solidária;
II.Garantir o desenvolvimento nacional;
III.Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV.Promover o bem de todos, sem preceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Além disso, nossa Constituição cidadã primou pela garantia dos direitos humanos, dos direitos sociais e políticos, em seus artigos 5º ao 11º e do 14º ao 16º. É, sem dúvida, um novo paradigma no arcabouço jurídico e democrático brasileiro.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Segundo Moroni, “a Constituição Federal de 1988 inova em aspectos essenciais, especialmente no que se refere à gestão das políticas públicas, por meio do princípio da descentralização político-administrativa, alterando normas e regras centralizadoras e distribuindo melhor as competências entre o poder central (União), poderes regionais (estados e Distrito Federal) e locais (municípios). Com a descentralização, também aumenta o estímulo à maior participação das coletividades locais – sociedade civil organizada –, criando mecanismos de controle social”.
Estes são alguns dos motivos pelos quais a Constituição de 1988 é considerada como a mais democrática dentre todas as constituições brasileiras.
Se a participação popular institucionaliza-se a partir da Constituição de 88, sua efetividade já vinha sendo construída no período pré-Constituição e se consolida durante os anos 90. Os movimentos sociais mobilizaram-se e participaram ativamente na elaboração do texto constitucional. As mulheres, por exemplo, tiveram seus direitos assegurados e ampliados, como a licença maternidade, a introdução da licença paternidade e a perspectiva jurídica da igualdade de direitos. O movimento de defesa dos direitos de crianças e adolescentes apresentou proposta com 1,5 milhão de assinaturas que referendou a emenda popular responsável pelo artigo 227, base para posterior elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente. Desta forma, crianças e adolescentes conquistaram na lei o status de sujeito de direitos e a primazia no atendimento. O crime de racismo foi uma decorrência da Constituição de 19889.

A Democracia participativa
Todo cidadão possui direitos políticos garantidos na Constituição Federal de 1988. Já vimos que o principal direito político e o mais exercido por todos é o direito de votar e ser votado. E que, além desse direito, a Constituição de 1988 possibilitou participação dos cidadãos e cidadãs nos rumos da Cidade, Estado e País e garantiu em seu artigo 14 o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, como formas de assegurar a soberania popular.
Se o significado de democracia é governo do povo, sem a garantia de participação da população não existe democracia de fato. Sem a sociedade organizada participando das questões estatais, há sempre o risco para que regimes autoritários surjam e ocorram retrocessos nos direitos conquistados.
Nesta perspectiva, a Constituição Federal de 1988, ao incorporar os direitos humanos e instituir a democracia participativa em nosso país, impôs ao legislativo a regulamentação de tais direitos e o incentivo de uma participação cada vez maior dos cidadãos e cidadãs.
É com este intuito que, a partir de 1988, os vários setores da sociedade organizada pressionaram e colaboraram na elaboração e aprovação das legislações complementares, com objetivo de regulamentar e aprofundar os direitos humanos, os direitos sociais e a democracia participativa.

A institucionalização dos conselhos
Em 1990, a Lei Federal 8.142, em seu primeiro artigo, dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências, cujo primeiro artigo diz que:

Art. 1° O Sistema Único de Saúde (SUS), de que trata a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, contará, em cada esfera de governo, sem prejuízo das funções do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias colegiadas:
I - a Conferência de Saúde; e
II - o Conselho de Saúde.

§ 1° A Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos com a representação dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, por esta ou pelo Conselho de Saúde.

§ 2° O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo.

A participação nos conselhos, enquanto efetivação da democracia participativa, tem significado uma permanente educação para a cidadania. A sociedade conquista um espaço de co-responsabilidade na definição de leis e políticas que garantem seus direitos.
A Lei Federal 8069 de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, é um exemplo importante disso, como outros que veremos em nossa próxima aula, quando trataremos dos conselhos dos direitos.


Referências bibliográficas
LYRA, Rubens Pinto, “Os conselhos de direitos do homem e do cidadão e a democracia participativa” , texto disponível em: http://www.dhnet.org.br/w3/ceddhc/ceddhc/rubens2.htm
MORONI, José Antônio, “Participamos, e daí?”- artigo publicado pelo Observatório da Cidadania, membro do Colegiado de Gestão do Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos – Inesc, dezembro de 2005, disponível em: http://www.ibase.br/pubibase/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1183&sid=127
BOBBIO, N. O futuro da democracia. Rio e Janeiro: Paz e Terra, 1986.
______. Crise e redefinição do Estado brasileiro. In: LESBAUPIN, I; PEPPE, A. (Orgs.). Revisão constitucional e Estado democrático. Rio de Janeiro: Centro João XXIII, 1993.
FALCÃO, M. C. A seguridade na travessia do Estado Assistencial Brasileiro. In: SPOSATI, A. et al. Os direitos (dos desassistidos) sociais. São Paulo: Cortez, 1991.
RAICHELIS, Raquel. A construção da esfera pública no âmbito da política de assistência social. Tese (Doutorado em Serviço Social). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1997.
SOUZA FILHO, R. “Rumo à democracia participativa”. 1996. Dissertação (Mestrado em Serviço Social), Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
SAMANIEGO, Daniela Paes Moreira. “Direitos humanos como utopia” . Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 46, out. 2000. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=76.
Anais da V Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Brasília 2003, palestra de Flávia Piovesan. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/conanda/anais.pdf

Constituição Federal de 1988 – disponível em:  http://www.presidencia.gov.br/CCIVIL/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm

Lei Federal 8142 – Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS – disponível em: http://portalweb05.saude.gov.br/portal/saude/area.cfm?id_area=169

Autoria: Maria de Lourdes Alves Rodrigues
Colaboração: Célia Maria Escanfella
Fonte: Curso de Formação de Conselheiros em Direitos Humanos (Abril a Julho/2006), realização de Ágere Cooperação em Advocacy, com apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos/PR. É permitida a reprodução integral ou parcial deste material, desde que seja citada a fonte.

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